Dia do Cinema Brasileiro – O Auto da Compadecida
- Gisele Alvares Gonçalves
- 5 de nov. de 2020
- 6 min de leitura
Olá, safados e safadas de todos os recantos desse Brasil amado… Tudo bem com vocês? Hoje estamos aqui para comemorar um dia muito importante no calendário nacional, ainda que pouco conhecido: o dia do cinema brasileiro. Para entrar nas comemorações, cada membro da equipe do No Escurinho do Cinema preparou uma resenha de um filme nacional, e não poderíamos deixar de fora desta lista o maior clássico das terras verde-amarelas, não é mesmo? Esta comédia deliciosa e inteligente, com grandes atuações e com qualidade de direção, que é pra dar gosto de ser brasileiro. E aí, quer embarcar nesta jornada comigo? Segure seu chapéu de cangaceiro, porque lá vamos nós!
Vamos começar falando, é claro, da figura mais querida do cinema brasileiro, João Grilo, interpretado brilhantemente por Matheus Nachtergaele. Eu não tenho palavras pra dizer o quanto admiro o talento do Matheus, que deu vida a este personagem vivaz, esperto, espontâneo e mentiroso que, apesar de todos os seus defeitos, a gente ama. Claro, o roteiro também contribuiu bastante para tornar o João Grilo esse cara que entende mais de psicologia que muito psiquiatra por aí, e que sabe usar os desejos obscuros das pessoas contra elas mesmas. Ambição, reputação, o amor de uma moça… Ele conhecia o recanto mais remoto do coração de cada morador de Taperoá, e assim manipula as pessoas, sempre em vistas de ganhar dinheiro e tirar a barriga da miséria.
Ao contrário de João Grilo, temos o frouxo do Chicó, interpretado também com maestria por Selton Melo. O cara é tão burro que, até mesmo quando ri, ele zurra… Bem como o seu animal espiritual. Aliás, esse foi um ótimo toque do diretor e do ator, que deram esta característica ao personagem como uma metáfora, além de render boas risadas para nós, espectadores. Além disso, Chicó é um excelente contador de histórias, mas um péssimo mentiroso. É quase como se ele quisesse mostrar ser mais do que é ao ter “vivido” todas aquelas experiências maravilhosas, como se ele desejasse que sua vida fosse mais do que era, como se ele quisesse ser especial de alguma forma. Assim, ele inventou papagaios que sabiam a bíblia de cor, peixes gigantes e grupos de pacas tão grandes que chegavam a deformar a água. Apesar de boa imaginação, no entanto, Chicó sempre se desmentia de alguma forma, e quando isso acontecia ele soltava o bom e velho “não sei, só sei que foi assim”.

Outra personagem que se destaca (e como!) é a Dora, interpretada por Denise Fraga. Eita mulher inteligente essa! Mas só é inteligente pra fazer safadeza, porque nunca vi alguém que gostasse mais de enfeitar a cabeça do marido do que ela. Na verdade, a Dora é uma mulher muito carente, e isso é comprovado quando ela passa a sentir ciúme da atenção que os homens dispensam à Rosinha, chegando a pagar (e caro) para fazer amor com o Chicó. A Dora precisa da atenção, da adulação que os homens lhe prestam… Necessita se sentir a estrela do show, a coisinha mais linda de toda a Taperoá. Ela é uma bichinha egoísta, que só pensa nas suas emoções, e consegue se conectar mais com os animais do que com as pessoas. Nisso, devo dizer, eu e ela somos iguais, pois eu realmente estava mais angustiada com o sofrimento da cachorra do que com as reclamações do João Grilo. Em geral, a Dora é uma diva do sertão, e até rever este filme, eu não lembrava o quanto eu amava ela. Dorinha, você vai ganhar um lugar no meu hall das deusas do cinema, isso eu te garanto!
Agora, não sei se vocês repararam, mas se o animal totem do Chicó é o burro, o do João é o Grilo (símbolo de sorte, vitalidade e sabedoria), o da Dora é o gato, afinal tem até uns miados quando a mulher fica manhosa com o marido! Acho muito legal como O Auto da Compadecida trabalha os personagens sobre estas figuras animais, que tanto trazem significados para nós. Dora não é apenas manhosa como uma felina, mas traiçoeira e desapegada como um também.
Quanto ao Eurico, bem… Se a mulher gosta é de enfeitar a cabeça dele, ele gosta é de ajudá-la nesta tarefa, porque o cara é mais burro do que o Chicó, e isso é dizer bastante coisa! E qual seria seu animal totem, se não o boi? O homem entende que é chifrudo, mas ao mesmo tempo não se divorcia da mulher, afinal ele não a ama, mas precisa dela. Eurico prefere tentar controlar a esposa do que livrar-se de um relacionamento que lhe faz mal, pois sente que depende de Dora, apoia-se emocionalmente nela. É por isto que ele não apenas perdoa suas muitas traições, mas obedece-lhe e faz-lhe as vontades em tudo, literalmente servindo de eco à sua voz.
Quanto ao padre e o bispo… Bom, os dois são farinha do mesmo saco: aprenderam todos os sacramentos, mas esqueceram daquela parte em que Jesus deu o exemplo do desapego às coisas materiais. Nossa, eu estou quase bancando o papel do Diabo aqui, dizendo todos os podres dos personagens! Mas é verdade, a simonia ali rolava solta, e nenhuma das leis canônicas valia quando se podia tirar um lucro de algum serviço religioso. Personagens não tão profundos quanto os anteriormente mencionados, mas ainda assim ajudam muito a contar a história, e representam bem seus papéis de corruptos, mostrando que João Grilo não era o único disposto a distorcer a verdade se fosse ocaso de ganhar um troquinho…
E quanto ao Severino? Baita personagem, baita antagonista na história! Mas, pera.. Ele foi absolvido no julgamento divino? Essa história que ficou meio entalada na minha garganta, afinal o homem matou gente a rodo, e tudo a sangue frio! Aterrorizou a cidade de Taperoá, e foi perdoado por um único acontecimento na sua vida? Claro que perder os pais de forma tão violenta é algo traumático, e graças a Deus eu não vivi isto para entender a dor exata desta experiência, porém nem todo mundo que passa por um trauma grande desses se torna um psicopata quando cresce. Nem que ele matasse por fome, pra conseguir o que comer, eu perdoaria esse aí, afinal o João Grilo também estava sempre faminto, mais pobre do que cachorro abandonado na rua, e nunca matou para conseguir dinheiro ou alimento. Mentiu? Mentiu. Extorquiu? É, também, mas nunca tirou a vida de ninguém, mesmo com a existência sofrida que levava. Enfim, achei que o argumento para a salvação de Severino foi pobre, e talvez este seja o único erro de roteiro que eu encontrei no filme inteiro.
Será que está faltando alguém sobre quem poderíamos falar? Ah, sim… Rosinha! A moça que roubou a clientela da Dorinha, e que, cá entre nós, não é nem de perto tão bonita quanto esta. É a inocência dela que chamava a atenção dos homens, inocência esta representada também por suas vestes, sempre com rendas claras, as saias compridas de forma a deixar a silhueta bastante feminina e romântica, como se fosse uma princesa tirada dos contos de fada. Já a Dorina se veste bem ao contrário… Roupas coladas ao corpo, decotes mais profundos, saias midi e batom vermelho. Essa mulher é puro fogo! Mas não representa conquista nenhum desafio para os homens, visto que costuma passar o rodo semanalmente nos cabras de Taperoá.

Bom, já falamos bastante sobre os personagens de O Auto da Compadecida, não é mesmo? Agora eu queria falar um pouco com vocês sobre outros detalhes da produção, como os cenários do filme. Vocês já foram a Taperoá alguma vez? Não? Eu também não fui, a não ser pelo Google Maps, mas com este recurso já deu pra conhecer bastante da cidade (que é bem pequena, aliás… É menor do que o meu bairro). Taperoá é a típica cidade de interior, as casas velhas, quadradas, sem prédios ou qualquer arquitetura que apele à modernidade. E é por isto que, em quesito de imersão no lugar retratado, eu dou nota 10 para o filme, com os objetos de cena escolhidos a dedo, dando a impressão de que entramos na casa da vó do interior. Até os retratos antigos de vó tem na parede, na casa do Eurico! Nossa, deu muita nostalgia! E se você tem parentes mais velhos no interior, certamente deve ter sentido também.
Tirando a questão do cenário, também é interessante comentar sobre o elemento do humor na trama. É interessante notar como, mais de uma vez, o elemento humorístico se encontra na repetição, quando um personagem diz exatamente o que o outro já havia dito. É o caso, por exemplo, da cena em que Dorinha chega em casa e é escorraçada pelo marido, e logo após ela dá um jeito de inverter a situação, sendo ela a escorraçar o esposo. Também é o caso em que o Vicentão, ao quase ser pego pelo marido de Dora, diz exatamente as mesmas palavras que Chicó disse ao quase ser pego pelo próprio Vicentão. É um tipo de humor inteligente e que, bem feito como foi neste filme, sempre vai funcionar. Digo mais: prefiro mil vezes este tipo de humor, que trabalha com os ditos e não-ditos, do que aquela comédia besta que só joga coisas aleatórias na tela, que se tornam “engraçadas” por não terem nada a ver com o resto da trama. De fato, nunca vou rir com qualquer cena de humor desta qualidade.
E aí, gostou da resenha? Qual o seu personagem preferido do filme O Auto da Compadecida? E sobre o humor da trama… Qual a cena em que deu mais risada? Comenta aí abaixo o que acha dessa obra-prima brasileira, e a quais outras você vai assistir para comemorar o dia do cinema brasileiro. Quanto a mim, vou ficando por aqui, e deixo um beijo e um queijo para cada um de vocês. Até a próxima!
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