A Metade Negra
- D. C. Blackwell
- 31 de out. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 6 de nov. de 2020
Dirigido por George Romero em 1993, a adaptação do romance de King com o mesmo nome transborda misticismo e consegue fugir de clichês que se perpetuam até hoje no mercado do suspense e terror. Começando com o perturbador e caótico som dos pássaros dentro da cabeça de Thadeus, somos levados à premissa de um thriller psicológico por boa parte do filme, sem que suspeitemos de algo mais sobrenatural que um escritor lunático que esconde sede de sangue insaciável nos confins da própria mente perturbada. E para nossa grande surpresa, somos enganados esplendorosamente por King e Romero quando nos é revelado um lado mais cósmico, que traz à tona uma genialidade e criatividade do autor para dar vida a tramas sobrenaturais sagazes e completamente únicas. Essa característica de King combinada com a maestria de Romero na arte de chocar com coerência e originalidade sem abrir mão do fantástico e do absurdo é responsável por criar um dos thrillers mais inovadores até os dias de hoje.

Sejamos sinceros, quantas obras de terror existem que nos levam para o mesmo final? O clássico e manjado “era tudo uma alucinação, e o assassino era o protagonista todo esse tempo” nos persegue de inúmeras maneiras, seja em obras do próprio King, como A Janela Secreta, ou em longas (devidamente) aclamados pela crítica e pelo público, como A Ilha Do Medo e Clube Da Luta. E não falo isso como quem reclama. Não mesmo, pois amo todas essas obras do fundo do meu coração.
Meu argumento aqui não questiona a qualidade das ditas obras, mas o fato é que essa mesma premissa é facilmente utilizada de maneira a obter sucessos de bilheteria, enquanto que A Metade Negra aborda um lado que, hoje, é infinitamente menos óbvio. Lembro que a reação que tive aos primeiros trinta minutos de filme foi pensar “por favor, que não seja o clichê da dupla personalidade de novo, por favor Deus”... Talvez isso se deva ao fato de que uma boa trama depende de originalidade, e esta se perde quando a mesma trama, um dia chamada de original, é trabalhada de tantas maneiras que ela se torna o padrão saturado do momento. Digamos que O Clube Da Luta fosse lançado hoje. Ele seria visto imediatamente como uma cópia barata, e isto se dá porque na época do filme, ele era original. Hoje, isso não seria mais verdade. Mas isto é história para outra matéria, não é mesmo?

Sobre os momentos mais George-King desse filme, aqueles pontos em que os olhos chegam a brilhar de espanto: Cena do olho dentro da cabeça do Thadeus, absolutamente todas as cenas com pássaros, cena do pesadelo e a morte de George Stark. Durante cada uma dessas cenas, abri um sorriso impressionado, deliciado com cada detalhe e cada feito artístico e na maneira como tudo era construído. Música, cenário, maquiagem e efeitos perfeitos para a época, dignos de tirar o chapéu até mesmo em comparação com obras atuais do gênero.
Não é à toa que Romero é o mestre, com sua violência milimetricamente calculada para causar a repulsa necessária, e não mais do que isto, ao público. Sua fotografia é urbana, simples, mas sombria ao mesmo tempo, combinando elementos que cabem perfeitamente em obras do King, como sarcasmo dentro da própria narrativa em momentos como a cena do primeiro assassinato, em que o fotógrafo deixa a prótese da perna pendurada no carro ao ser puxado por George Stark. Esses elementos tragicômicos remetem a uma verossimilhança muito poderosa que beira o tragicômico, porque na vida real, essas coisas acontecem mesmo. Nada é limpo e perfeito como o cinema geralmente tenta fazer parecer, especialmente assassinatos, e é por isso que este filme acerta em cheio ao trazer esses detalhes, dando um pé no chão na trama e mostrando a imperfeição à qual estamos constantemente sujeitos em qualquer cenário imaginável. O transporte dessa sensação, dessa ideia, para um thriller sobrenatural é simplesmente genial aos meus olhos.

No fim das contas, o filme também é uma grande alegoria para alguns sentimentos que transpiram de muitos escritores. A sensação de estar preso a um gênero, a uma marca, um estilo de escrita e a noção de que você não pode parar de fazer algo porque senão o seu mundo desabará lentamente, têm protagonismo na obra. Outro grande e imperdível comentário a se fazer nesse sentido é a presença do cigarro e do álcool na história, em especial sob posse de George Stark, o lado negro de Thadeus, a parte que ele tenta rejeitar e que se alimenta dele. A parte que ele inveja e deseja ver viva no começo da trama – e mais tarde o admite em voz alta -, que suprime tudo de ruim que Thadeus vê em si mesmo e a concentra em uma única entidade monstruosa que jamais poderia, na visão dele, ser associada a si mesmo de qualquer maneira, está lá, viva, e se mantém assim porque Thadeus o quer. Ele não consegue mais ter controle sobre essa parte dele que ele achava que precisava e que suga suas energias para tentar tomar seu lugar. Este é um verdadeiro duelo de forças de vontade entre um escritor e seus demônios.
Este é um filme sobre um homem que, assim como King, quase foi derrotado por essa mesma entidade que vivia dentro dele, repleta de vícios e pensamentos sombrios que ele transcrevia e depois vendia em forma de livros. Assim como King, Thadeus também criou seu monstro em uma sala escura e sem acesso ao mundo exterior, numa tentativa de focar-se na escrita, pratica desaconselhada pelo mestre do terror nos dias de hoje. Assim como King, Thadeus teve ajuda fundamental da sua esposa e filhos para dominar esse monstro e transformá-lo numa parte dele mesmo, controlável e saudável. A Metade Negra, enfim, é sobre isso: a luta que travamos todos os dias com nossos demônios, e o que acontece quando começamos a perdê-la.
Muito interessante o filme mesmo, e profundo! Os questionamentos sobre identidade e sobre autocontrole são muito bons, especialmente por terem sido representados de forma metafórica e cósmica.