Bacurau, ou um Psicotrópico Muito Forte
- Ana Franskowiak
- 17 de jun. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 25 de mar. de 2021
Saudações Cósmicas. Tudo na paz? Receio que não por muito tempo. E tanto melhor. Estranho seria se ela se mantivesse depois do que vem pela frente.
A menos que você tenha caído de uma espaçonave, o nome Bacurau com certeza não lhe é estranho. Escrita e dirigida por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles e produzida por Emilie Lescaux, Said Ben Said e Michel Merkt, a produção suscitou debates, destacou-se por atuações e bordões icônicos e conquistou merecidos prêmios. Trata-se de uma equilibrada mistura de ação, distopia, terror e drama que, tal como o título desse texto sugere, há de alterar seu estado de consciência. Como alterou o meu.

Bacurau, pequena cidade nordestina, lamenta o falecimento de Dona Carmelita. Teresa, sua neta, retorna por ocasião do funeral e é recebida por Plínio, professor, que, durante uma de suas aulas, constata a consumação tétrica e reflexiva de uma conhecida força de expressão: Bacurau sumiu do mapa. Por sorte, pelo menos em sua escola, os meios digitais não suplantaram seus antecessores físicos, de modo que o mapa impresso não deixa dúvidas quanto à existência da cidade. Será que é bem ele? Nesse ínterim, demais eventos preocupantes começam a tomar vulto, como, por exemplo, ataques por arma de fogo a carros e caminhões e o aparecimento de cadáveres.
A trama se desenvolve de modo ágil e envolvente, revelando aos poucos que Bacurau foi a escolhida para sediar um jogo torpe, justamente por seu caráter factível, no estilo O Albergue, protagonizado por pessoas que se consideram legitimadas para fazer o que e com quem bem entenderem. A partir dessa consciência, a população se une, articulando meios de impedir o extermínio iminente. Ressalte-se, entretanto, que Bacurau ultrapassa a máxima desgastada de que a união faz a força, expondo demais temas igualmente pertinentes e necessários embrulhados por trilha sonora, fotografia e cenários impecáveis. A saber, filmado em Acari e Parelhas, no Rio Grande do Norte.

Cada personagem encerra em si um mundo de significados, e o mesmo se aplica a falas que, num primeiro momento, podem soar despretensiosas, como a espirituosa e espontânea resposta de um menino à forasteira a serviço de interesses mórbidos. Arrisco dizer que mesmo os locais emanam vida. Especificamente, o museu que, simbólico, simples e solene, servirá de palco para um desenlace apoteótico a deixar suas marcas nas paredes. Marcas que não devem ser apagadas. Bacurau não está extinto, conforme pressupõe a forasteira. Tampouco é um passarinho, e sim “um pássaro. Brabo. Que dá essa impressão porque só sai de noite”, relata a dona do bar, numa fala ambígua.
Assistir a cúmplices da barbárie colhendo, ao invés dos privilégios esperados, os frutos amargos de seus atos e omissões, como o lendário Diomedes devorado por suas éguas carnívoras, não produz o discutível prazer decorrente do amálgama de justiça e vingança do qual fruiríamos num blockbuster oitentista, sobrevindo um choque seco, silente e pesaroso derivado da consciência da constante luta por sobrevivência em locais tão esquecidos quanto a viatura enferrujada que adorna a paisagem árida; ditada por regras não escritas que aproximam as pessoas dos animais na pior acepção da palavra, a exemplo do entretenimento exibido num telão e protagonizado por Pacote - ou Acácio, conforme seu desejo de deixar para trás o passado.

Porém, como nem tudo é perfeito, embora repleto de pontos altos, como a cena da estufa, as falas de Domingas, a demagogia sustentada por doações esporádicas que se pretendem muito justas enquanto a verdadeira justiça é obstada entre coerções cordiais, violências explícitas e livros tratados como lixo, há momentos que maculam o primor dessa película: a súbita e supostamente redentora tomada de consciência de Michael, e uma alfinetada nos ideais repugnantes de supremacia branca que, mais improvável que fosse a honestidade do prefeito Tony Júnior, resultou falsa e ridícula. Todavia, foi redimida por um diálogo que sucede o achado na carteira de uma das vítimas que se pensava algoz.
Isso tudo coroado pelos emocionantes e mais que adequados versos de Geraldo Vandré, que faço questão de transcrever:
Vim aqui só pra dizer
Ninguém há de me calar
Se alguém tem que morrer
Que seja pra melhorar
Tanta vida pra viver
Tanta vida a se acabar
Com tanto pra se fazer
Com tanto pra se salvar
Você que não me entendeu
Não perde por esperar
E QUEM ENTENDEU, TAMBÉM.
Sejam gente, vão na paz e do widzenia.
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