Factótum ou, Tudo pela Arte
- Ana Franskowiak
- 24 de jun. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 25 de mar. de 2021
Saudações Cósmicas! Aceitam uma bebida e uma boa história?
“Às vezes sinto como se estivéssemos todos presos num filme. Sabemos nossas falas, onde caminhar, como atuar, só que não há uma câmera. Porém, não conseguimos sair do filme. E é um filme ruim”.
Felizmente, dessa vez, e talvez apenas dessa vez, a fala certeira do Velho Safado não se aplica. Ao menos não no tocante a essa grata adaptação da sua obra, do ano de 2005, dirigida por Bent Hamer e estrelada por Matt Dillon e Lili Taylor.

Factótum: Sem Destino baseia-se no livro homônimo de 1975, segundo romance de Charles Bukowski, protagonizado por seu alter ego, Henry Chinaski. E, não raro, com a leitura de sua prosa pragmática e despida de pudores materiais e formais, porém, nem por isso, menos profunda que obras mais lapidadas ou prolixas, uma pergunta vem à mente: onde termina o Charles e começa o Hank? Sinceramente, pouco importa.
Factótum é um título ambíguo, provocativo e genial. Ao mesmo tempo em que o termo latino descreve uma pessoa encarregada dos afazeres de outrem, ele também se aplica a quem se julga ou demonstra capaz de fazer ou resolver o que for. Traduzindo, Faz Tudo, Pau pra Toda Obra, Jack of all Trades e o que mais o valha. Todavia, penso que o subtítulo resta desnecessário, equivocado. Se há algo que o ébrio e azarado Hank demonstra possuir de sobra é propósito, destino. Um destino ou razão de viver forte o bastante para fazê-lo perseverar apesar da desumanidade predominante nas relações precárias de trabalho e nos relacionamentos interpessoais que transitam da aleivosia à violência física. Ou, talvez, apenas a forma menos dolorosa de preencher o tempo vazio de sentido e pleno de questionamentos ainda não respondidos e que atormentam toda alma niilista: ele quer, tão somente, viver daquilo que ama e lhe é intrínseco: a escrita. E em busca de algo simples, porém, nem tanto, vivencia situações dignas da imortalidade, material para preencher, quem sabe, uns seis romances, e dezenas de contos e poesias.
Pois, nas palavras de Hannah Arendt: “toda dor pode ser suportada, se sobre ela puder contar uma história”.

Tudo começa com Chinaski saindo de van para um serviço externo de forma levemente descuidada e sendo flagrado em seguida pelo chefe ao fazer uma pausa para encher o tanque. Num bar. Alguma dúvida quanto à sua permanência no emprego? Não importa. No final do dia, mesmo no quarto de pensão mais humilde, sua máquina de escrever o estará esperando. E algo para beber. E quem sabe, alguém. No caso, Jan.
A comicidade mordaz que oscila do hilário ao desesperador contribui para o caráter realista, inclusive por causa, e não apesar, de eventos que cruzam os limites do improvável (quem sabe, apenas para pessoas que, na vida arriscaram pouco, como diria Charles Bauelaire, mas essa é outra história), contribuindo para a consecução de uma obra completa, que suscita compaixão, identificação e mesmo repúdio. Inclusive pelo protagonista. Nas palavras do Velho: “Em meu trabalho, como escritor, eu apenas fotografo, em palavras, o que vejo. Se eu escrevo sobre ‘sadismo’ é porque ele existe, eu não o inventei, e se algo hediondo ocorre em meu trabalho é porque tais coisas acontecem em nossas vidas. Não estou do lado do mal, uma vez que algo como o mal existe em abundância”. Parece familiar? Atual? Ele segue: “…nesta época, quando qualquer momento pode ser o último para muitos de nós, é irritante e absurdamente triste que ainda tenhamos entre nós as pessoas pequenas, amargas, os caçadores de bruxas e os que pregam contra a realidade. Ainda assim, eles também estão conosco, eles são parte do todo, e se eu não escrevi sobre eles, eu deveria, talvez o tenha feito aqui, e isso basta. Que todos nós fiquemos melhores juntos”.
Ainda que atenuado em relação ao livro, Factótum: Sem Destino, mostrou-se excelente e imperdível. Caracterizada por cenários imersivos, boas atuações e diálogos excelentes transcritos ipsis litteris, a adaptação honra a obra original, convidando a conhecê-la, tal como eu, Bukowskiana de carteirinha, vos convido com este texto.
Quem não gostaria de reagir da mesma forma sucinta, polida e sincera que Hank ao constrangedor happy hour proporcionado por seu chefe, ainda que na melhor das intenções, caso se encontrasse em situação análoga? Quem nunca sentiu impotência perante situações de flagrante injustiça em cuja base jazia o abismo da desigualdade de recursos e oportunidades? Quem nunca sofreu por relacionamentos conjugais ou nunca se questionou, afinal, qual é a razão disso tudo? Gostando ou não do excessivamente humano Henry Chinaski, eu sei a resposta para essas perguntas. E vocês, também.

Com final esperançoso arrematando sucessivos altos e baixos (preponderam os baixos, ressalte-se), reforça-se a ideia de que a arte, às vezes, também convertida em fardo, é dos fardos o menos pesado a se carregar num mundo repleto de atos apartados de seus discursos floreados. Teria ela alguma função pré-definida? Talvez, entretanto, seja perfeitamente possível dizer a que ela não se presta: agradar a quaisquer pessoas além daquela que topa (quase!) qualquer negócio para vê-la tornar forma e tornar-se, talvez, um pouquinho melhor. Agora, com licença: minha cerveja gelou e eu preciso escrever.
Façam de tudo pelos seus sonhos ou nem tentem, e do widzenia!
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