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Fahrenheit 451 e as Chamas Inextinguíveis

  • Foto do escritor: Ana Franskowiak
    Ana Franskowiak
  • 21 de out. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 6 de nov. de 2020

Saudações Cósmicas e…


“Come on baby, light my fire…”

“Katherine Wheel, I´m burning for you”

“There is a flame, flame in my heart…”


Vocês são felizes? Não pergunto se estão no momento, mas se são como um todo. Ou estão somente enchendo peneiras de areia enquanto o mundo queima? Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, lançado em 1953, sempre será, para mim, um dos melhores livros já escritos. Seja pelo caráter atemporal do tema central, seja pela profundidade conferida a todas as personagens, proporcionando identificação e certa dose de razão mesmo àquelas que antagonizam com o protagonista Guy Montag. E devo dizer que sua primeira adaptação cinematográfica nada deixa a desejar em relação à obra da qual se origina.



Dirigida por François Truffaut, a película data do ano de 1966 e conta com excelentes atuações. Sou algo suspeita para discorrer sobre cenários e figurinos, uma vez que a estética da época me encanta (alguém, por favor, traga de volta à moda as calças boca de sino e os penteados colmeia, sim), e, verdade seja dita, trata-se de um tópico secundário: embora a presente obra retrate um futuro distópico, alguns clichês futurísticos como roupas prateadas, raios laser, botões e luzes coloridas por toda parte não encontram espaço aqui. As perturbadoras mudanças no tecido social ocorrem a níveis muito mais intrínsecos e, ainda assim, a nível coletivo e quase irreversível.


Guy Montag, vivido por Oskar Werner, é um bombeiro prestes a receber uma promoção no emprego. Ele vive com sua esposa, Linda (Mildred no livro), interpretada por Julie Christie, uma mulher aparentemente “comum e normal, fruto do seu tempo”, em uma casa confortável, com amplas janelas que facilitam a iluminação e a ventilação (sei…), da qual destoa uma única residência: aquela antiquada e habitada por uma afável e curiosa professora: Clarisse, também interpretada por Julie Christie! E tudo parecia correr muito bem na vida de Montag, não fossem os sinais de adoecimento social manifestados por Linda, as instigações filosóficas de Clarisse e, especialmente seu ilícito hábito secreto: Guy Montag lê, sendo que sua corporação, há muitos anos, não extingue o fogo, mas o provoca, destruindo pilhas de perniciosos livros diante de plateias extasiadas, mediante denúncias. Parece absurdo? Pois eu tenho fortes razões para crer que não.


Ao mencionar que raramente o corpo de bombeiros é acionado, uma vez que, por vontade própria, as pessoas perderam o interesse pela literatura, Fahrenheit 451 corrobora algumas premissas previamente descritas em Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, equilibrando-as com outras expressas em 1984 de George Orwell dado que a vigilância coletiva foi naturalizada, especialmente se tratando de pessoas fora dos padrões como Clarisse. Ressalte-se que a queima de livros e criminalização de quem os possuísse não se deu repentinamente. O processo de instauração de um novo regime envolve propaganda massiva, falsificação de eventos históricos e, no cerne de tudo, a abolição do diálogo e carência de meios eficazes para dirimir conflitos. Algo lhe está incomodando? Não falemos nisso. Compre, assista, interaja (somente) com as pessoas que concordam você. E se tudo isso falhar, queime o que lhe incomodar... ou sua efígie consubstanciada nesses objetos repletos de páginas e palavras difíceis que só servem para nos deixar mais tristes.


Filme e livro se complementam naquilo que um ou outro silenciam, de modo que se alguns aspectos da obra literária não foram representados, frustrando minhas expectativas de leitora purista, muitos outros foram acrescentados, não exatamente suprindo-os, mas promovendo o diálogo cuja ausência culminou no regime aberrante que as obras retratam e que (medo) tanta falta fazem nos tempos correntes. É verdade que me doeu a ausência do professor Faber, idealizado por mim como uma pintura de Isidor Kaufmann. Entretanto, Cyril Cusack incorpora o controverso Capitão Beatty de forma tão competente que nem a minha imaginação literária conseguiria conceber. O mesmo se aplica a Bee Duffell, que eu chamarei de Bibliotecária e que também atuou em Monty Python em Busca do Cálice Sagrado e na série The Prisoner (isso aí, aquela da música do Iron Maiden). Digo que Montag não é o único a ficar permanentemente perturbado por sua breve e única aparição.



Minha maior apreensão ao buscar pela adaptação residia na figura do Sabujo Mecânico, resposta de Ray, conforme suas palavras, ao Cão de Baskerville de Arthur Conan Doyle e mascote do corpo de bombeiros, farejador exímio e máquina mortal diante da qual Montag, no livro, começa a sentir certa inquietação. Sua supressão é habilidosamente compensada por belos, dramáticos e emblemáticos closes de certos livros enquanto queimam, assim como as aulas ministradas por Montag para que os jovens bombeiros saibam como vasculhar casas em busca de livros.


Que dizer de Clarisse Mc Clellan, uma de minhas personagens preferidas da literatura? O fato nem um pouco casual de Christie interpretar duas personagens tão díspares aliado ao seu maior protagonismo compensa minha decepção algo egocêntrica por não ter me deparado com a Clarisse de olhos castanhos e sonhadores do livro. É graças a ela que Montag, outrora agente da lei e da ordem, posteriormente convertido em fugitivo, encontrará refúgio junto a pessoas industriosas, que encontraram seus meios de sobreviver em um mundo doente sem serem punidas: elas tornaram-se os livros. E é esse desfecho somente um pouco menos lúgubre em relação à contraparte literária que proporciona alguns dos momentos mais engrandecedores e geniais com relação ao filme de Truffaut. As Pessoas Livro apresentam-se pelo nome da obra que aprenderam de cor, de maneira que o conteúdo não se perca com a queima dos livros físicos. Entretanto, é preceito basilar de sua comunidade nunca se julgarem mais importantes que aquelas pessoas que não podem ou não querem ler. É um deleite ver um “jovem livro” se apresentando como uma obra do próprio Bradbury e comovente ver um “velho livro” passando adiante seu legado. Qual livro Montag decide se tornar? Assistam e descubram.


Da alienação caleidoscópica à hipermedicalização. Do narcisismo delirante à ilusória e comprada sensação de poder e importância. Da espetacularização do abuso e de todas as formas de violência à interatividade vazia. Fahrenheit 451, infelizmente segue tão atual como as radioconchas com as quais Linda silencia o mundo ao redor. Sendo, porém, o fogo um elemento tão inerente à evolução humana e indispensável à manutenção da vida como um todo, cabe a nós alimentá-lo sem jamais permitir que ele se volte contra nós. E quais livros vocês seriam? Confesso que, como a chama bruxuleante de uma vela, eu oscilo entre dois ou três…


Que o dom de Prometeu lhes ilumine e aqueça e do widzenia!

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