O Poço e o Apetite para a Destruição
- Ana Franskowiak
- 1 de abr. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 25 de mar. de 2021
Saudações Cósmicas, almas famintas de boas histórias!
Uma pergunta algo indiscreta antes de começarmos essa conversa: algum dia você, como na belíssima e igualmente depressiva letra de Down in a Hole, do Alice in Chains, já se sentiu no fundo do poço? Eu já. E tenho uma notícia que consegue ser ao mesmo tempo boa e ruim: sempre se pode descer mais. E tanto O Poço quanto quem o habita está lá para gritar desconfortáveis obviedades.

Dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, e contando com Iván Massagué, Antonia San Juan, Zorion Eguileor, Emilio Buale Coka and Alexandra Masangkay no elenco, O Poço é um banquete que requer meses para ser digerido. Que bom, pois nunca se sabe quando será possível catar alguma migalha perdida. Quanto mais, banquetear-se.
Goreng, protagonista interpretado por Iván Massagué concorda em participar de uma mescla de experimento com sádica brincadeira, e acorda em uma cela marcada com o número 48 e caracterizada por um poço central de profundeza imensurável. Trimagasi, o outro ocupante do claustrofóbico e sombrio recinto, já habituado com as rotinas do local, reputa-o sortudo, pois ele já ocupou níveis mais baixos e ninguém sabe até onde o poço se estende. Poço através do qual uma plataforma contendo alimentos desce uma vez por dia. A comida decresce em quantidade e qualidade juntamente com os números dos andares, quase sempre ocupados por duas pessoas, até chegar ao nível insondável aonde nada resta, forçando quem se encontrar nos níveis mais baixos a usar dos parcos meios ao seu alcance para tão somente sobreviver. Alimentar-se. Não importa do quê ou de quem. Não grite para quem está abaixo, nem para quem está acima, adverte o colega de miséria mais experiente. Pois ou não ouvirão, ou não se importarão.

Amante que sou das intertextualidades torna-se impossível não estabelecer um diálogo da obra com máximas de Friedrich Nietzsche e Ernest Hemigway. E sabendo que ao olhar em demasia para o abismo ele nos olha de volta, Goreng, não pode desver as trevas abaixo de si, e passa a arquitetar modos não apenas de sobreviver, como de modificar aquele sistema cruel uma vez que ninguém é uma ilha isolada.
Voluntários, desesperadas, indiferentes, criminosos a quem foi facultada uma pena alternativa, importa muito pouco o que motivou aquelas pessoas a ocuparem, não o mesmo barco, pois isso muda conforme a maré, mas o mesmo mar, de manjares e rejeitos, em aleatoriedades que ocorrem a cada trinta dias. Recursos há para que nada falte a ninguém, todavia, conjunturas muito peculiares levam indivíduos ora esfaimados, ora superalimentados a desconsiderar valores como racionalidade e compaixão, mesmo tendo conhecido praticamente todos os níveis do poço, demonstrando a possibilidade sempre surpreendente de superação. No melhor e no pior de cada índole. Vale ressaltar que caso tente-se guardar a mínima fração de alimento, a morte virá na forma de frio ou calor extremo. “Matamos o tempo, o tempo nos enterra”, e assim o organismo, físico e psíquico, devora a si mesmo.
Teria Goreng a preocupação de esfacelar um sistema injusto caso tivesse total certeza de que nunca iria descer? Em suas mudanças periódicas de nível, eis que ele encontra Baharat, um indivíduo tão forte quanto desesperado e que concorda em levar seu plano adiante. És um visionário, Policarpo, foi a frase que ecoou na minha mente ao assisti-los arquitetando sua ideia simples, porém grandiosa, e que apesar do propósito elevado, poderá requerer medidas extremas. Numa satírica liberalidade, é facultado às pessoas que habitam o poço, levar consigo um único objeto. E não por acaso, Goreng escolhe ter consigo um exemplar de Dom Quixote. Para ser alguém, é preciso devorar os livros, ocorreu-me mais tarde, perante outra das mais marcantes cenas.

Quando, após adversidades horripilantes, a dupla pensa ter chegado ao fundo absoluto, depara-se com algo inesperado e capaz de reacender a esperança do melhor mesmo em quem já viu de perto e em tão pouco tempo, o mau, o péssimo, o terrível. E que por alguma razão desconhecida, parece não ter se conspurcado com o horror que predomina ao redor. Enquanto isso, alguém distante o bastante para dar-se o luxo da indiferença e até da ignorância, se farta prazerosamente com os tormentos alheios. E quanto daquilo que circunda o poço é condicionado pelo âmbito interno ou externo, não é algo fácil de estabelecer. Talvez jamais seja possível determinar se as conjunturas, favoráveis ou adversas, criam ou tão somente revelam aquilo que a carne e os desejos mais secretos carregam. Resta saber que uma vez dentro do poço, ele também passa a viver dentro de você. E nunca se sabe quem, obedecendo a ciclos diversos, da matéria às estruturas hierárquicas perpetuadas sem questionamento, poderá, mais cedo ou mais tarde, estar dentro de você.
Perturbador, doentio, indigesto, evocando Flávio Karras, e, por isso mesmo tão necessário e intrínseco à humanidade. Se eu recomendo? Óbvio!
Alimentem-se bem, leiam os clássicos e Smacznego! Ops, Do widzenia!
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