Quem parasita em Parasita?
- Ana Franskowiak
- 27 de mai. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 25 de mar. de 2021
Saudações Cósmicas!
Já ligaram para alguém hoje para agradecer pelo céu azul e sem poluição e pela chuva abençoada da noite anterior? Caso o façam, lembrem-se de que, provavelmente, o seu paraíso é o inferno de outrem, nas palavras das criaturas Hellraiser.

Parasita, de 2019, dirigido por Bong Joon-ho foi um dos filmes mais aclamados dos últimos tempos, e motivos para tal não faltam. Embora eu admita que os minutos iniciais não tenham me cativado de pronto, asseguro que quem sobreviver a eles, dando a merecida chance dessa produção sul-coreana de se desenrolar no seu próprio tempo (leia-se, um filme aparentemente parado no início), fruirá de uma experiência das mais duradouras e, principalmente, impactantes e transcendentes.
Tudo começa com mais um dia na vida da família Ki. Seus quatro membros estão vivendo em um porão sujo, pequeno, bagunçado, literalmente abaixo do mundo lá fora e fechando caixas de pizza para poder sobreviver. As circunstâncias começam a mudar, todavia, quando um amigo de Ki-woo, o filho, anuncia que viajará, deixando vago o seu cargo de professor particular de Da-hye, filha adolescente da rica família Park, e indicando-o para substitui-lo.
Uma vez contratado, Ki-woo, vislumbra a oportunidade de empregar a irmã Ki-jung, como preceptora de Da-song, o filho menor e hiperativo da família Park e, nas palavras da mãe, traumatizado por um episódio que guarda relação com certo segredo macabro de Moon-gwang, a governanta e que constitui uma das cenas mais medonhas de todo o filme, seja pela estética de terror clássico, seja pela situação que ela oculta.
Após viver muito tempo com pouco, surge o compreensível deslumbramento ao viver pouco tempo com muito. E planos para empregar na mesma casa o pai e a mãe, sem revelar seu parentesco e à custa das injustas e ardilosas (criativas, há quem diga) demissões do motorista e da governanta. Particularmente, aprecio obras cujo título passa a fazer sentido ao longo do enredo, e é precisamente, nesse momento que tal horizonte se abre. É, entretanto, com a saída da família Park para um passeio de final de semana forçosamente interrompido que a situação, até então ligeiramente cômica, assume tons assustadores e complexos, e enseja o título da presente resenha.

O sucesso do aludido parasitismo estaria atrelado à suposta inocência da família Park, o que logo levanta outra questão: haveria, nessa trama, inocentes em âmbito mais amplo? A narrativa nos leva indiretamente a uma gradual indisposição em relação à mãe, ao filho, e até mesmo aos cachorrinhos da família Park, sendo que um olhar mais analítico demonstraria a irracionalidade dessa atitude, com base na aludida inocência, seja ela intrínseca a animais e crianças, seja por essa última constituir um produto do seu meio, bastante limitado em visões de mundo, ainda que pleno de recursos. Ouso arriscar que o mesmo se aplique à irmã e à mãe, sendo o pai a figura mais moralmente discutível dentro da família Park, vide a emblemática sentença por ele proferida e que servirá de estopim para um episódio trágico.
As duas famílias, protagonizando díspares realidades que se tangenciam, servem de espelho inverso e seu relacionamento evoca mesmo conceitos ecológicos. Quem, assim como eu, amava Biologia na escola, talvez ainda se lembre de algumas relações entre os seres vivos, como o tão frisado parasitismo, o mutualismo, a protocooperação, o comensalismo… já um enfoque mais voltado para as questões filosóficas e sociais evocará, por exemplo, ideias acerca da maldade intrínseca do ser humano, ou, de sua corrupção mediante a vida em sociedade, além de noções de certo e errado sujeitas a relativizações, dependendo não tanto de quem, mas por que as pratica.

A cena da chuva, assim como aquela que a sucede é simples, icônica e indelével. Ela demonstra como o mesmo fenômeno, amoral e abiótico, é recebido de maneiras distintas e chega a suscitar culpa e desassossego pela fruição de prazeres, alguns simples e inócuos, outros, nem tanto. Precedida por muito bom gosto e sutileza no tratamento de questões ácidas é a cena da emblemática festa de Da-song, ambientada no cenário idílico e sugestivo do jardim em uma linda tarde ensolarada, na qual a presença de Ki-jung é requerida fervorosamente. Ela teria cruzado uma linha imaginária que ameaça a estrutura das coisas tal como se apresentara até então. E isso não pode acontecer. Cada vez mais fica evidente que não se trata de grupos ou indivíduos, mas de um conjunto de ideias (que você pode chamar de tradição, por exemplo), que faz com que tais grupos ou indivíduos repliquem comportamentos sem questioná-los. Porém, toda tradição é criada por alguém. Logo, alguém pode destruí-la. Ou adaptar-se a ela da melhor forma para resgatar uma presa engolida pelo suntuoso produto de um parasita maior e invisível.
Com um final angustiante e a narrativa típica da Nova Face do Terror sobre a qual pretendo discorrer em outro momento, Parasita constitui uma obra icônica que ilustra, provoca e faz pensar, se, porventura, mesmo sem querer, um dia já parasitamos alguém. E como e se seria possível a inter-relação de indivíduos distintos sem correr esse risco.
Vejam bons filmes, cultivem boas relações e do widzenia.
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