Uma Louca, Preocupante e Atual Obsessão
- Ana Franskowiak
- 23 de set. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 6 de nov. de 2020
Saudações Cósmicas!
Já pensou em ter o seu trabalho, seja ele qual for, conhecido e amplamente apreciado, a ponto de haver pessoas a se intitular suas fãs número um? Gratificante, certo? Bem… talvez nem tanto.

Na contramão do que, usualmente, ocorre com palavras antigas, que cedo ou tarde são ressignificadas, a palavra fã segue retratando fielmente sua raiz etimológica: fã deriva de fanaticus/a/um, ou seja, palavra de origem latina. Ela descreve uma pessoa “insana e divinamente inspirada”, que dedica a algo ou alguém uma adoração acrítica, movida por entusiasmo obsessivo de cunho religioso ou partidário, e, recentemente, essa expressão teve seu significado expandido para o âmbito artístico.
Eu sigo Fulano. Beltrano cancelou Cicrana… (Eu proponho um exercício: transponha essas frases para um contexto 100% físico. O resultado é perturbador…)
Não por acaso, com certa frequência, chegam aos nossos ouvidos notícias nas quais pessoas fanáticas perpetraram atos de extrema torpeza por ordem ou sugestão de um ídolo carismático e manipulador, ou atentaram contra seus outrora ídolos quando algum trabalho ou ato seu, mesmo que extremamente pessoal, contrariou a doentia expectativa que alimentavam. Resumindo: o fanatismo extrapola a apreciação salutar, configura uma patologia mental, e é aí que entra minha dica dessa semana.

Louca Obsessão, numa tradução livre e bastante adequada, se baseia no livro Misery de Stephen King. O filme dirigido por Rob Reiner foi lançado no Brasil na sugestiva data (ao menos, para mim) de 4 de março de 1992 e rendeu a Kathy Bates um Oscar e um Globo de Ouro de Melhor Atriz. Francamente, merecido é apelido. E, apenas a título de curiosidade, a personagem vivida por ela é a favorita de King, e eu mesma já lhe prestei homenagem em um conto meu chamado Vampire Heart…
Paul Sheldon, escritor vivido por James Caan (seu papel se destinava a Jack Nicholson) sofre um acidente de carro, fica inconsciente e acorda em uma cabana, a princípio acolhedora, com duas pernas fraturadas. Quem o encontra e auxilia é Annie Wilkes, enfermeira aposentada, autointitulada sua maior fã, e tutora de uma porca (invejinha…) que recebeu o nome de sua personagem preferida dos livros de Paul: Misery. Talvez, nesse ponto, haja um inevitável prejuízo tocante à tradução, porém, ínfimo perante os frutos do fanatismo que se seguem.

Conforme Paul se recupera, Annie se entristece com sua partida iminente e, durante um acesso de fúria, confessa que ninguém o procurou, não devido à sua alegação inicial de que a casa estava inacessível em função das nevascas, mas porque ela jamais comunicou sobre seu paradeiro. Sua índole assustadora, porém, se revela em definitivo ao descobrir que Misery vai morrer no próximo livro da série de Paul, forçando-o a escrever um novo volume que altere esse acontecimento. Daí por diante, ocorrem engenhosas, todavia, malogradas tentativas de fuga, e uma das cenas mais dolorosas que, talvez, somente seja compreendida como tal por quem, mais do que amar, produza conteúdo artístico. E isso considerando que os tormentos físicos infligidos a Paul são alguns dos mais medonhos já descritos. Assistam e descubram.
Em Criminologia, uma pessoa na posição de Annie, que se vale de técnica e de posição privilegiada para levar adiante seus propósitos doentios, é chamada de Anjo Misericordioso ou Anjo da Morte. Como na conhecida música do Slayer que trata de Jozef Mengele. Ademais, ela não é fã de gêneros literários marginalizados, como os abrangidos pelo rótulo de ficção especulativa e que, segundo visões preconceituosas, induziriam pessoas a perpetrar os atos que ela perpetra. Talvez tal amostra gráfica de que patologias, físicas ou mentais, não têm rosto e acometem pessoas mais do que insuspeitas, endeusadas pela sociedade (Annie teria sido inspirada em Jane Toppan, enfermeira e assassina serial estadunidense do século XIX), seja um dos pontos mais altos de Louca Obsessão. Mas não é o único.
Contando também com Lauren Bacall no papel de Marcia Sindell, a agente literária de Paul, o filme demonstra que uma excelente história, encenada por um excelente elenco, dispensa superproduções. Seu final é perturbador, e resta impossível não comparar a criatividade de Sheldon, no intuito de escapar de seu cativeiro, com o tormento de Grace, protagonista de Entre Quatro Paredes de B A Paris, que, espero, receba em breve uma justa adaptação cinematográfica.
Desconheço melhor amostra de sensatez que discordar parcialmente daquilo ou daquelas pessoas cujo trabalho alegamos apreciar. Porém, o advento de práticas como o fanservice indica uma tendência anniewilkizante de inversão dos propósitos artísticos: ao invés de, primeiramente, agradar a quem a produziu e suscitar questões e diálogos conforme recepcionada pelo público, a arte passa a, obrigatoriamente, ter de agradar às massas cada vez mais vazias de diálogos e dúvidas e repletas de escárnio e fúria. Com sorte, esconjurando e queimando tão somente as obras que as ofenderam como fãs.
Leiam, assistam, discutam, discordem, apreciem com moderação e do widzenia!
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