A Idiocracia já Começou (?)
- Ana Franskowiak
- 2 de set. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 25 de mar. de 2021
Saudações Cósmicas!
Já se sentiu em meio a um bando de idiotas? Já se sentiu idiota? Já se sentiu idiota por estar em meio a um bando de idiotas e não saber como vencer ou, pelo menos, contornar a alarmante e crescente idiotice circundante? Eu tenho o filme para você! Mas, antes do filme propriamente dito, o que é ser idiota?

Com o decurso do tempo, as palavras podem assumir novas conotações, e eventualmente perder as acepções originais. É o que se espera que ocorra com todo idioma vivo e, especialmente, com vocábulos antigos.
A palavra idiota remete ao grego antigo. Hoje em dia, ela se converteu num xingamento genérico direcionado a pessoas das quais nós não gostamos, que agem de modos que não entendemos ou concordamos, porém, entretanto, contudo, à época da discutível e excludente democracia grega, essa palavra designava, de modo bastante pejorativo, aquele indivíduo que, preenchendo os requisitos para participar da vida pública, decidia abster-se. O idiota original era um individualista, sendo daí derivada também a palavra idiossincrasia, particularidade.
Analisando por esse prisma, até que ser idiota nos nossos dias (na concepção clássica, frise-se) não é algo tão ruim. Ao mesmo tempo em que a época corrente é reputada como uma das mais egoístas, nunca os nossos direitos individuais estiveram tão ameaçados, muitas vezes, por condutas “voluntárias e consentidas” (quanto da sua intimidade você expõe a pessoas estranhas?) da parte de quem deveria defendê-los ardorosamente. E assim percebemos nossa inserção numa sociedade massificada, cujos membros perpetram, com orgulho, condutas impensadas. “Indivíduos”. Idiotizados. Bem-vindos e bem-vindas ao modelo idiocrático de sociedade.

Idiocracia é uma produção de 2006, escrita e dirigida por Mike Judge, que consiste em retratar sua visão acerca da trajetória social estadunidense; um 2001 que deu MUITO errado, em alusão àquelas ilustrações satíricas e simplistas da evolução humana, onde o membro mais adiantado da fila ordena que os demais voltem. O tom escolhido para dar vida essa mistura bem dosada de ficção científica e crítica social é o típico pastelão norte-americano. Esse aspecto talvez desagrade a quem considera mais adequado um humor sutil, intelectualizado… mas que diabos, a intelectualidade e a sutileza morreram! Ou foram soterradas por lixo, conforme veremos.
Em Idiocracia, assistimos ao resultado desastroso provocado pela soma dos piores aspectos da idiotia clássica e contemporânea, uma vez que o individualismo patológico atrofiou as capacidades de raciocínio mais basais.
O filme inicia com uma narração típica de documentário. Ela informa a respeito de um retrocesso evolutivo detectado no início do século XXI. Resumidamente: por uma ou outra razão, as pessoas tidas como inteligentes estavam postergando a decisão de ter bebês, enquanto as desfavorecidas, do ponto de vista cognitivo, estavam vencendo em quantidade e não em qualidade. Seus rebentos, frutos de uma distopia disgênica, serão aqueles que moldarão e herdarão o mundo de 500 anos à frente.
Joe, bibliotecário (Luke Wilson), e Rita, prostituta (Maya Rudolph), participam de um experimento de animação suspensa, sendo suas características “medianas” o critério selecionador. A experiência – e suas cobaias, obviamente – é esquecida, e quinhentos anos depois, de maneira acidental (com o colapso de uma montanha de lixo. Sim, LI-XO!), as câmaras nas quais jaziam são descobertas e reabertas.

Do empobrecimento vocabular à precarização das estruturas, a população se adaptou a viver entre lixo físico e figurado. Tal como Frito (Dax Shepard faz cara de idiota com ninguém. E isso é um elogio!) vivia, até a câmara de Joe atravessar a parede do seu barraco de plástico e ter sua vida entrelaçada à de seu desnorteado ocupante.
Desconfiado de alucinação, Joe procura ajuda médica. E eu não entrarei nos detalhes da consulta. Importa apenas saber que ele não possui a tatuagem de código de barras com a qual pagaria o médico e é preso. E adivinhem quem é o defensor que o Estado designa para defendê-lo? Desafortunadamente, a atuação de Frito, dono de um nada casual bordão (Eu gosto de dinheiro), não beneficia seu cliente. Mas, afinal, o que esperar de um… bem… já sabemos!
Joe é renomeado como Não Sei, escapa levando um teste de QI e vai parar na Casa Branca, aclamado como a pessoa mais inteligente viva. Entra, então, em cena o Presidente Camacho (ninguém menos que Terry Crews), ex-ator pornô e ex-lutador de MMA, que o incumbe de resolver em uma semana a crise climática e econômica que devasta o país. Do contrário, o que lhe aguarda como punição é uma versão atualizada dos espetáculos cruentos da Roma antiga. Embora a crise tenha atingido proporções monstruosas, tal só se deflagrou no decurso de muito tempo, uma vez que a solução ridiculamente simples poderia ser apontada mesmo por um indivíduo mediano. A questão deixa de ser o que ou como fazer, e sim como convencer pessoas imediatistas e acostumadas a ter tudo sem fazer nada a seguirem uma orientação acertada, cujo resultado não se faz observável da noite para o dia. E idiotas com poder e nenhuma predisposição a observar, ouvir e esperar representam problemas muito maiores que o problema em si.
Do anti-intelectualismo explícito à deturpação do passado, a depender de quem o narra, passando por hábitos de consumo doentios, Idiocracia revela-se acuradamente genial. Entretanto, enquanto eu o revia e pesquisava para compor esse texto, fiquei ciente de fatos relevantes e preocupantes em torno dessa produção.
Quando, anos mais tarde, Mike Judge foi questionado a respeito da data de lançamento postergada indefinidamente, e da exígua publicidade nos poucos cinemas onde a obra foi exibida, ele alegou tratar-se do resultado de testes negativos. Porém, qualquer indivíduo de intelecto mediano que tenha assistido três minutos de filme saberá ler nas entrelinhas de sua fala comedida.
Entretanto, como prova do poder da arte e de que a turba de idiotas, embora expressiva, ainda não se revela absoluta, apesar dos esforços para ocultar a obra (não quero usar aquela outra palavra polêmica), ela conquistou admiração fervorosa, sendo impossível não se identificar com o retrato criado por Judge.
Se, de um lado, uma população “sensível” (prevejo uma nova palavra a ser esvaziada de significado) se ofendeu ao encontrar no filme um espelho, de outro, quem amou, amou. Simples, tautológico e praticamente… idiota!
Toda idiocracia lança raízes quando permitimos que alguém pense e decida por nós, até o ponto em que se perde a capacidade de ler o mundo, interpretá-lo e traduzi-lo por meio da identificação, para bem e para mal. Prepare-se para identificar em você sintoma do universo, como diz a canção, e assista a essa joia antes que nos tornemos ainda mais idiotas, ou alguém a censure de vez. Ops! Falei!
Bebam água, não se deixem enganar e do widzenia!
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