Entendendo Eraserhead - CRÍTICA
- D. C. Blackwell
- 16 de jul. de 2021
- 6 min de leitura
Sem sombra de dúvida, este filme é uma relíquia do cinema cult. Escrito, dirigido e produzido por David Lynch, o longa foi a primeira obra do diretor, e levou seis anos para ficar pronto, tendo sido custeado essencialmente por familiares e amigos. A obra é grande representante do surrealismo e do horror gótico nos cinemas e revolucionou na maneira como se faz terror.
Já não é de se suspeitar que, quando se fala em cinema cult ou terror gótico, quer-se dizer impopular nas grandes mídias. Porém, esse filme vai além. Até para os dias de hoje, interpretar Eraserhead se faz uma tarefa pouco leve, já que se trata, entre as infinitas interpretações por aí, de um pesadelo. Então, se você veio aqui procurando uma resposta, saiba que vai achar uma, mas que ela não é a correta nem a definitiva, e que qualquer outra interpretação que você ver por aí pode estar no mesmo patamar desta. A visão exposta aqui tampouco tem esta intenção e é exclusivamente minha. Dito isso, vamos ao que interessa.
A primeira coisa que você precisa saber para entender Eraserhead é que a obra trata de um pesadelo. Mais do que isso, ela também reflete um período da vida de David Lynch no qual ele se divorciou de sua esposa, bem como as pinturas do diretor/roteirista/produtor. E como uma boa obra da sétima arte que se envolve e flerta com pinturas surrealistas, as sensações que o filme transmite são infinitamente mais poderosas do que as palavras ou a trama em seu estado mais puro. Este é, afinal de contas, um longa que retrata o estado psicológico de Henry Spencer antes, durante e depois de descobrir que ele teve um filho com a jovem Mary, sua namorada.

Henry começa sua trama andando por um lugar deserto e sinistro, repleto de estruturas de metal abandonadas e retorcidas, um verdadeiro mundo industrial frio e solitário. O som de fundo, como em boa parte do resto do longa, é um constante ruído antinatural, que muito se assemelha ao som que ouvimos quando estamos submersos, mas com algo a mais, algo que não se encaixa com algum som que deveria poder ser reproduzido por algo que seja minimamente bom. A iluminação é fraca e sinistra e, conforme ele adentra o seu apartamento, tudo parece piorar. Quando ele então vai à casa de sua namorada, há a percepção de imensa estranheza nos comportamentos da família de Mary – e dela mesma, inclusive. Ela resmunga, eventualmente, como se pedindo carinho da mãe, que fornece. Mais tarde, o seu pai aparece e passa a reclamar intensamente do seu trabalho, até que é parado pela mãe de Mary.
A partir desse momento, ele para de falar e apenas esboça o mesmo sorriso falso e exagerado, sem pestanejar ou tirar os olhos de Henry. Tudo isso acontece enquanto Henry espeta um frango que começa a escorrer uma gosma nojenta que faz a mãe de Mary gritar e sair chorando. Isso tudo não é o que parece: é tudo da cabeça perturbada de Henry. É como ele está percebendo as coisas, de forma exagerada e grotesca. Aquela família tem comportamentos que ele vê com profundo desgosto, e por isso tudo nesse momento se torna incrivelmente bizarro – dentro da cabeça dele. Esses eventos refletem a tensão no ar, e o constrangimento da família diante do visitante também porque há um motivo para Henry estar desconfortável e estar sofrendo pressão deles: ela está grávida, e a mãe de Mary é quem conta a ele, exigindo uma resposta para a pergunta “vocês fizeram sexo recentemente?”. E a resposta é sim. E o bebê é prematuro.

Um bebê prematuro. Já parou pra pensar? Já imaginou o que se passa na cabeça de um cara com um emprego medíocre numa fábrica, que conta os centavos para sair de casa? Um cara que teve a infelicidade de ter um filho por acidente sem ter a menor ideia de como cuidar de um bebê? E ainda por cima, prematuro, cheio de possíveis complicações e fragilidades? É esse serzinho bizarro que ele vê, um pequeno monstro que arruinou a sua vida e que tem um aspecto tão feio e frágil ao mesmo tempo. Um ser que chora o dia inteiro e que pouco se assemelha a um humano, sempre enrolado na fralda. É esse monstro que ele vê que tanto o ameaça com a perda da própria vida e, por consequência, da própria identidade – reflexo da cena em que sua cabeça cai e a do bebê nasce no lugar, simbolizando o medo e a repulsa de Henry pela criança.
E tão terrível era o sentimento que ele tinha pelo bebê, que ele começou a tentar se convencer de algo ainda mais sinistro – ou melhor, a mulher que mora no seu radiador tentou. Essa mulher representa a voz na cabeça dele que flerta com a ideia da morte como uma solução para os seus problemas. Ela dança para um lado e para o outro, esquivando os vermezinhos que muito se assemelham à criatura que Henry agora chama de filho, quase espermatozóides, se for parar pra pensar. Um a um, ela os esmaga, sorridente, porém um tanto tímida. É assim como ele vê essa ideia naquele momento, com descompromisso, como um pensamento bobo e vago, acomodado no fundo de sua mente perturbada. Com o passar do tempo, entretanto, e com a possibilidade de saciar os seus desejos, que foram colocados em pausa pela separação de sua nova esposa, Henry recorre à sua vizinha – e à simpática e tímida moça em seu radiador, que agora retornava com mais força e com uma melodia, dizendo: “No céu, tudo está bem, você tem suas coisas boas e eu tenho as minhas”. Na tentativa de racionalizar o desejo de morte que ele tem pelo bebê e toda a desgraça que ele acha que este causou em sua vida, ele passa a acreditar que
é isso mesmo o que ele deve fazer – enviar seu bebê ao Céu, onde tudo está bem, onde ele terá suas coisas boas, e o bebê, as dele.
Por fim, naquele quarto repleto de plantas e terra sem vasos, ao som da moça do radiador e aos gritos da criança pestilenta, Henry pega a tesoura e desvenda o monstro que tanto odeia. Toda a fragilidade daquele serzinho exposta aos seus olhos lembra muito um dos causos de David Lynch, no qual ele pede a um amigo que lhe dê um gato morto para dissecar e estudar as entranhas do animal. Doido varrido? Talvez, mas essa experiência pode ter sido o motivo do sucesso dos efeitos visuais de Eraserhead, especialmente nesta cena, em que Henry esfaqueia a criança e a vê morrer. Ele agora dança com a moça do radiador, concluindo a tarefa, aliviando a própria mente com o assassinato do monstro que o impedia de ser feliz.

Mas por que tudo isso foi um pesadelo?
Certo, vamos lá. Lembram do começo do filme? Henry pisa numa poça da água, mas não se ouve nada. Apenas o som bizarro que serve de trilha para o filme todo. Outras passagens bizarras mostram que as coisas simplesmente não têm linearidade, porém são assim propositalmente, tal como a cena que faz jus ao título, na qual a sua cabeça decepada é enviada a uma fábrica de lápis para fazer as pontas que apagam dos lápis – simbolizando a sua vontade de poder apagar tudo o que aconteceu –, a cena em que a vizinha e ele vão para a cama, que vira uma banheira quente onde os dois afundam até sumirem, dentre todos os outros lapsos da realidade e da linearidade do longa. Tudo isso dá o tom de pesadelo à obra, a tornam uma expressão de sensações que transcendem diálogo e trama e se moldam em uma ideia – ou uma visão que reflete a juventude dos anos 70 e a maneira como eles se sentiam sob os regramentos sociais conservadores de seu tempo, onde uma vida poderia ser forçada numa direção sem sentido algum por causa de um filho, e nem se fala nas jornadas de trabalho nas fábricas, então! Esse pesadelo de David Lynch é a representação artística do sofrimento e desespero de uma geração inteira expressa através de monstros, estranhezas e loucura.
Agora, se você quer saber se Henry realmente matou o filho, ou se interessou por tentar traduzir os eventos do filme para fatos coerentes na vida de Henry e das pessoas ao seu redor, acredito que só resta dizer que uma interpretação assim não caberia numa visão artística – ao menos não nesta, pois o que importa, no fim, não é o que aconteceu de verdade, e sim como o nosso protagonista (ou autor) se sentiu ao longo dessa jornada, e isso é algo que devemos procurar compreender no longa, um significado para esses sentimentos, ideias e emoções que presenciamos ao longo dessa uma hora e meia de filme, e que, para mim, revelou tudo o que precisávamos saber. Discutir se é real ou não é tão infrutífero quanto discutir se Capitú traiu Bentinho ou não.
Eraserhead, quando lançado, estava além de seu tempo, o que causou o seu fracasso de bilheteria. Contudo, a obra foi salva pelas sessões da meia-noite, famosas nos Estados Unidos por promoverem filmes pouco convencionais e que não eram bem aceitos pelo público comum. Isso levou Eraserhead a se transformar no clássico cult de terror gótico e surrealista amado pela subcultura gótica até mesmo aqui, no Brasil, ainda hoje.
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